Comida é um reflexo da cultura, da natureza e do cenário socioeconômico de um tempo e lugar. A economia determina o que há de ingredi...
Comida é um reflexo da cultura, da natureza e do cenário socioeconômico de um tempo e lugar. A economia determina o que há de ingredientes no mercado para cada classe social e a cultura e as técnicas culinárias de uma época e local definem como a produção alimentícia se transforma na gastronomia que chega às nossas mesas.
Quem já viveu mais de 4-5 décadas sabe “datar” os quitutes e delícias surgidos ao longo do tempo e os que vieram para ficar. Como é o do acepipe ilustrando a matéria. Onipresente em toda festa da década de 60-70, pedaços de queijo, azeitona, salsicha em lata e outros espetados em palitos de dente, guarnecendo um melão ou melancia bravamente sacrificados para apresentar o petisco conhecido por sacanagem.
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Strogonoff flambado |
O Strogonoff, por exemplo, surgiu nas mesas brasileiras no fim da década de 70. Nunca se apresentou como a receita original russa, mas veio para o Brasil afrancesado, por conta dos champinhons salpicados e o conhaque flambado, coisa que nunca fez parte da receita russa, que como sabemos, os cossacos preferem a vodca e a cebola. Já o creme de leite, esse é parte da receita russa, ou quase, no leste europeu o negócio é o creme azedo. Por aqui, a Nestlé, pioneira no creme de leite de caixinha, ajudou a impulsionar o “estrogonofe” como pode em direção à mesa do brasileiro: A iguaria de carne em cubos com molho de tomate e banhada em creme de latinha. O tempo foi passando e o nobre strogonoff foi saindo das mesas mais finas de socialites e restaurantes de renome, para a mesa da classe média, perdendo o filet mignon, o creme fresco, o conhaque e ganhado versões com catchup e outras coisitas.
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Estrogonofe popular |
Na década de 80, os cubinhos de carne foram substituídos por iscas feitas por máquinas em supermercados. Essa foi a deixa para o uso de carnes menos nobres devidamente amaciadas e desfibriladas pelo novo processo de corte. Daí em diante, o brasileiro foi adaptando o prato até estrogonofe virar molho e recheio tipicamente nacional para diversos outros quitutes populares, sendo o próprio consumido no dia-a-dia misturado com arroz e batata-palha de saquinho.
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A bebida dos 70. Havia Coca-Cola, rum e poucas opções de bebidas de qualidade. Era a mistura perfeita. |
Mas o Strogonoff é um sobrevivente. Outros acepipes de outras épocas não tiveram tanta sorte e, embora nossos leitores mais maduros venham a “aguar” com as lembranças vivas de certos pratos a seguir, a maioria passou para a história, ou pelo menos já não são frequentadores de todo dia à mesa, restaurante, ou toda festa que frequentamos hoje em dia.
E por falar em Russia, na década de 60-70 o Brasileiro era obcecado por "pratos de origem russa" reinterpretados na França e depois reciclados grosseiramente por aqui e, como a Russia estava sob a cortina de ferro e ninguém ia para lá, nem mesmo os poucos abastados que traziam os modismos de Paris, as caçarolas nacionais assassinavam pratos internacionais nobres ou apelidavam invenções tupiniquins com nomes "russos".
Havia a salada russa, coisa do trivial nacional e o frango à Kiev, um frango tenro recheado de manteiga e ervas que habitava os melhores restaurantes e, aos poucos foi sumindo diante da voracidade inventiva do brasileiro que lhe recheou com catupiry e encharcou em óleo.
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Frango à Kiev |
Na linha do "não pode faltar na festa", haviam os canapés de pão de forma enrolados em manteiga e maionese com recheios e enformados no congelador.
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torta fia de pão de forma |
Gelatinas criativas satisfaziam o apetite pela artificialidade que permitiu a Kibon, por exemplo, nos servir sorvetes de frutas tão artificiais até a década de 90, que os chamávamos de sabores tinta Suvinil. Lembram?
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Os quitutes traduziam a criatividade do brasileiro diante de um mercado restrito. |
Mas havia também a "papa fina" dos jantares na casa dos amigos, alguns dos quitutes, felizmente sobreviveram as últimas seis décadas, como a sopa de cebola gratinada e o coquetel de camarão.
Difícil uma festa jantar de classe média alta na década de 70 não ter um ou outro.